quarta-feira, novembro 4

"E apenas brincar, não chega?"

 Estes dias, num dos textos que partilhei sobre atividades, levantaram a questão “E apenas brincar, não chega?”

 Esta pergunta faz-me pensar em vários aspetos relacionados com tudo o que se tem vivido e partilhado pela internet. Irei deixar-vos alguns aspetos que considero relevantes ter em consideração, não a conclusão sobre nenhum estudo científico.

Em primeiro lugar, temos que situar o que para nós é definido como “não chega”. Posso entender que algo não é suficiente e outra mãe pode entender que é demais. Se pensarmos em doces é muito fácil perceber este conceito. Para uma mãe, dar um chocolate por semana pode ser demasiado (o ideal seria comer apenas em aniversários), para outra, um chocolate por semana pode ser pouco (ela comia 5 por dia e não ganhou diabetes). Este é um exemplo simples e concreto para nos ajudar a definir o que é afinal o “não chega”. Cada um de nós terá o seu “limite” imaginário em relação ao que pretende fazer com os seus filhos.

Em relação às atividades e à estimulação, podemos também ter vários tetos. Uma mãe pode desejar criar um filho que se sinta apenas feliz, outra pode desejar criar um Einstein em ponto pequeno, bilingue, que saiba ler aos 4 anos e escrever o nome manuscrito aos 5. (Exagerei um bocadinho na comparação só para definir que os objetivos podem ser realmente diferentes).

Se eu pensar no “não chega” como algo que será suficiente para que a criança desenvolva dentro dos parâmetros conhecidos como normais “é mais do que suficiente”.

 

Mas, vamos pensar por partes:

 

O BRINCAR DE ANTIGAMENTE VERSUS O BRINCAR DE HOJE EM DIA

Se recuarmos no tempo e pensarmos na forma como brincávamos no nosso tempo e como as crianças brincam hoje em dia teremos várias respostas a esta questão.

No nosso tempo (e não precisamos recuar assim tanto para perceber grandes diferenças) de que fomos estimulados? Quantas atividades estruturadas vocês fizeram na vossa primeira infância? Fizeram alguma? De que tipo? Quem preparou? Onde?

Talvez se recordem facilmente de uma ou outra atividade “diferente” lá pela primária ou ensino básico. Eram poucas e tão fascinantes, não eram?

Sentiram que essa falta de oportunidade para explorar materiais “diferentes” vos deixou longe da “normalidade” ou de um objetivo? Sentiram que ficaram mais condicionados por isso?

E hoje, sentem-se menos capazes por ter sido assim? Por não terem sido sujeitos a uma estimulação precoce criada a partir de atividades preparadas e planeadas pelos vossos pais?

Aqui poderíamos entrar pelo debate de alguns estudos científicos, mas não quero entrar pela base científica, até porque os bons estudos limitam-nos em termos de variáveis e quero debater este tema de forma livre. Vamos simplificar e utilizar apenas a experiência de vida?

 

BRINCAR DE FORMA LIVRE VERSUS BRINCAR DE FORMA ESTRUTURADA

Partindo do pressuposto que a principal ocupação da criança é o brincar, e enquanto terapeuta ocupacional posso diferenciar uma atividade que lhe é apresentada de uma que é criada por si mesma como uma atividade que é estruturada e uma que é espontânea (ou livre), respetivamente.

Imaginando o cenário da atividade que lhe é apresentada, compreendamos que a criança apenas viu o resultado final e nada fez para brincar com aquilo. Se pensarem nas partilhas que veem por aí, quantas atividades apresentadas às crianças foram construídas por elas antes de lhes chegarem às mãos? A criança vê a atividade no momento em que a tem disponível para brincar.

E quantas vezes repetem-se essas atividades? Fazem-se uma vez e arrumam-se para sempre? E se a criança gostar muito? Repete-se no dia a seguir? E no outro e no outro e no outro, sempre que ela pedir?

Por outro lado, uma atividade livre é aquela que a criança criou, a partir de um material ou de algo que lhe deram ou ela própria encontrou. Este tipo de atividade, que a criança prepara dá-lhe, por si só, uma envolvência emocional maior e uma capacidade de planeamento, auto-controlo e criatividade superiores. Ela tem que esperar pelo resultado final para a poder usar. Ela sabe o quanto custou e tem que a cuidar, ela idealizou o conceito e concretizou, ela quer explorar o que acabou de inventar. Nota-se, até pela descrição que o próprio processo é um processo mais demorado, e por si só, já faz parte do brincar.

 

BEBÉS VERSUS CRIANÇAS

Não podemos esquecer de algo fundamental: os dois grandes grupos de crianças: os bebés, dos 0 aos 3 anos, que requerem muita atenção e muita orientação e as crianças a partir dos 3 anos, idade a partir da qual começam a revelar um crescente potencial para desenvolverem as atividades que mais as estimula.

Imaginemos os bebés e voltemos atrás no tempo. Imaginem-se bebés, com base no que se recordam ou vos contaram: Quantas atividades eram planeadas? Quantas vezes meteram a mão no arroz, na gelatina ou na tinta para procurar objetos ou apenas explorar livremente? Talvez não se recordem de histórias deste género (e a recordar, talvez sejam poucas). Mas certamente recordar-se-ão das vezes que foram ao parque passear, andar de triciclo, às cavalitas, de fazer o avião, dos assobios e de todas essas atividades que grande parte dos familiares produz quando pega um bebé no colo. Não precisavam (ou praticamente não precisavam) de objetos para brincar.

Há uma mudança significativa na forma como a nossa sociedade vive atualmente e essa forma de viver difere de região para região, de país para país. Na sociedade em geral, em Portugal sobreutdo, uma das grandes diferenças que encontramos é o número de elementos que rodeiam as crianças. Hoje em dia o número de elementos em redor de uma criança é menor. As crianças vivem mais isoladas, longe de uma comunidade segura e diversificada o suficiente para a estimular. As crianças possuem menos pessoas de referência porque as famílias tendencialmente são mais pequenas.

Em relação aos bebés, há uma maior necessidade de se "reinventarem" atividades e formas de o "entreter". Defendo que se um bebé pequeno não frequentar a creche é realmente importante que os pais se dediquem a ele. Mas no fundo, defendo sempre isso. É nosso dever enquanto pais estar presentes para os nossos filhos, sobretudo nas idades em que mais precisam de nós. E por muito que seja aliciante criar atividades diversificadas e explorar tudo o que vemos por aí, não há uma real necessidade inventar-se demasiado. Aproveitar o que a natureza nos dá e as ferramentas que o nosso corpo nos permite criar serão boas formas de permitir à criança a estimulação de todos os seus sentidos e de colocar à prova todas as suas competências. Assim, e no meio de uma rotina, muitas vezes, exigente, basta utilizar os elementos da natureza, a voz e o próprio corpo para criar atividades bem estimulantes e ótimas para o desenvolvimento da criança.

Claro que tudo isto aplica-se se a criança apresentar um desenvolvimento padrão dentro dos parâmetros conhecidos como normais. Crianças que evidenciem sinais de alarme necessitarão de um acompanhamento especializado, de forma a potenciar a estimulação de competências específicas. E está mais do que provado que qualquer intervenção precoce permitirá melhores resultados. Mas isso é como outra doença qualquer. Uma criança que não vê bem ao longe precisará de óculos para ajudar a ver melhor. A sua natureza não lhe permite chegar mais longe, mas uma ajuda extra pode permitir-lhe ter uma vida “normal”.

 

Relativamente a crianças maiores, sobretudo a partir dos 3 anos, 3 anos e meio notamos um crescente aumento de competências e a brincadeira flui cada vez mais naturalmente. Ela é capaz de recriar vários cenários, de explorar e dar vida a diferentes materiais e o seu tempo de permanência em cada atividade é cada vez maior. Da mesma forma, defendo que devemos estar sempre de olho na criança e, no caso de estar sózinha connosco, devemos fazer-lhe companhia. Conheço realidades diferentes e não se podem esquecer as crianças que são "abandonadas" dentro da sua própria habitação. Pais que cuidam mais deles do que dos próprios filhos continua a ser uma realidade, infelizmente. Mas, se estivermos disponíveis para aprender com elas, se pararmos para as escutar, elas irão conduzir-nos com muita naturalidade para o que pretendem explorar. Quando há irmãos é mais fácil criar mais momentos de interação. 

AFINAL, BRINCAR É SUFICIENTE?

Brincar é fundamental. É (ou deve ser) a principal ocupação de qualquer criança.

Promover atividades diferentes às crianças é ótimo, mas na realidade, o que produzimos de forma natural no nosso dia-a-dia cria um impacto maior na sua personalidade e forma de viver. A relação que estabelecemos com elas, a forma como as orientamos, a forma como cuidamos delas e a forma como as introduzimos nas nossas tarefas é crucial para todas as aprendizagens que ela possa vir a ter.

Sou apologista da estimulação precoce por todas as razões e mais algumas que trago da minha área profissional. Mas sei, enquanto mãe, a dificuldade que existe em criar um equilíbrio entre todas as variáveis que constituem o dia-a-dia de tantas mães, muitas como eu, com uma rede de suporte muito curta ou inexistente. Por isso, para vos tranquilizar, posso apenas dizer: as crianças chegam lá, na grande maioria dos casos. Não são necessárias atividades XPTO ou muito atrativas ao olhar (ao nosso e ao delas). Para mim, é ótimo explorar coisas diferentes, é ótimo contemplar o comportamento da criança. Mas, não temos que ser todas iguais. E, se quiserem e conseguirem incluir uma ou outra atividade diferente, apenas desfrutem do momento. Apreciem a forma como a criança se envolve na atividade e como é capaz de brincar. Senão, levem a criança convosco para todo o lado, conversem com ela, cantem, dancem e leiam juntos. Será mais do que suficiente.

Não se preocupem se não desenvolvem atividades muito diferentes das que fizeram parte do vosso percurso. Não é necessário ser criativo para permitir à criança um desenvolvimento normal e feliz. E há sempre aqueles jogos básicos, que todas as crianças acabam por receber e que são ótimas ferramentas para as "testar": os jogos de tabuleiro, dominó, puzzles, plasticina,... E tudo o que a natureza e comunidade nos coloca à disposição.

E lembrem-se sempre: dar à criança a oportunidade de não ter com o que brincar é por si só uma forma de a estimular. Ela sentirá necessidade de criar algo para se "entreter". Afinal de contas, ela só pensa em brincar ;)

Por isso, à pergunta “não basta apenas brincar?” Acho que já vos dei uma resposta.


PS: Poderíamos analisar mais variáveis, mas acho que abordei algumas das mais "importantes" para a questão que foi levantada.

E vocês, o que pensam sobre tudo isto? Afinal, apenas brincar é ou não suficiente?

 



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